Por Roberta Pschichholz.J
Por muito tempo, psicólogos e neurocientistas pensavam que a cognição social era como uma pessoa descobre, em sua própria mente, o que outra pessoa está pensando ou sentindo. Isso inclui entender, além das emoções e pensamentos, suas intenções e comportamentos. Em outras palavras, cognição social seria o ato de interpretar, com base no tom de voz e nas expressões faciais, o que o outro está pensando ou sentindo. Mas uma abordagem recente da cognição, introduzida por Francisco Varela, Eleanor Rosch e Evan Thompson, no livro “The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience”, de 1991, propõe a investigação de um paradigma completamente diferente: o do sentido-participativo que tem como foco o papel que nossos corpos, suas histórias, movimentos e relações desempenham na forma como produzimos sentido e nos entendemos mutuamente.
O Centro de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de Santa Maria (CCSH/UFSM), através do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, vem se consolidando como um importante polo de pesquisa em enativismo, no Brasil, graças ao aporte financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) recebido, em 2022, pelo projeto Enativismo: Desenvolvimentos e Desafios ou apenas Projeto Enact, como tem sido chamado. Sob coordenação da professora e pesquisadora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do CCSH/UFSM, Nara Miranda de Figueiredo, o projeto conta com a participação de outros 24 pesquisadores de oito universidades localizadas em quatro diferentes países (Brasil, Estados Unidos, Austrália e Canadá) e tem cada vez mais integrado novos participantes em seu desenvolvimento.
O primeiro workshop realizado pelo Projeto Enact ocorreu entre os dias 13 a 17 de novembro de 2023, em Santa Maria/RS, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), além do CNPq. Especialistas em Filosofia da Linguagem, Ética, Fenomenologia, Lógica e Arte reuniram-se para participar de palestras sobre temas correlatos, debates com base em artigos e capítulos de publicações que são referências para a investigação enativista. Uma oficina de produção participativa de sentido ocorreu em parceria com a professora e pesquisadora do Curso de Bacharelado em Dança da UFSM, Dra. Silvia Wolff (fotos de 1 a 4). Coreógrafa, diretora e bailarina em projetos de criação em dança, Silvia também participa do Grupo de Pesquisa Tecnologias, Corporeidade e Cognição e coordena o grupo de pesquisa Corpoéticas – Contribuições da dança para a Academia, ambos vinculados ao CNPq.

A programação foi concebida para engajar pesquisadores já envolvidos com o tema e pessoas interessadas em compreender do que trata o enativismo. O resultado foram momentos memoráveis de muita conexão, trocas preciosas e aprendizados que seguem reverberando nos participantes. É o caso do professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Marcos Silva, membro do projeto Enact e um dos palestrantes do encontro.

O cenário é de expansão, frisa Nara, porque existe um movimento muito grande de reconhecimento destas novas propostas de concepção da cognição, que rompem com o paradigma mais “cerebralista” que está posto. “Isso não significa minimizar o papel do cérebro no processo cognitivo, mas sim reconhecer que ele é um dos elementos que compõem o nosso processo cognitivo”, pondera ela.
São muitas as maneiras pelas quais o enativismo pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento filosófico. Uma delas, por exemplo, está na metafísica, em questões sobre a natureza da realidade, da cognição e da linguagem, aponta a pesquisadora.
“Ou seja, todas essas questões sobre a natureza desses fenômenos podem ser revistas à luz das teses enativistas. Há, também, questões sobre epistemologia, pensar o conhecimento como afetividade, contato e conexão. Seria um aspecto muito mais aprimorado do que costuma-se compreender como conhecimento intelectual, nossa capacidade de fazer cálculos, ter raciocínio lógico. Esse tipo de conhecimento é considerado o grande diferencial da humanidade, pois demonstra que somos seres intelectuais, com capacidade de raciocínio mais desenvolvida que outros animais”, explica Nara, ao fazer referência às abordagens estudadas pela filósofa e cientista cognitiva Hanne De Jaegher, para quem as conexões socioafetivas seriam nosso tipo de conhecimento mais sofisticado e propriamente humano.

O enativismo traz, ainda, implicações para a filosofia da linguagem, sobre o significado linguístico e como ele é obtido, o que significa a participação de todos os interatores numa certa dinâmica e como isso influencia na construção de significado. Há, também, a proposta de analisar a dimensão que emerge das interações, a dinâmica que se estabelece entre as pessoas e como essa dinâmica apoia/carrega/proporciona relações afetivas, de confiança, por exemplo.
Nara observa que há um domínio ético atrelado a todas essas reflexões. Portanto, há um reconhecimento de que a ética é parte essencial de nossas vidas e de nossas relações.
As implicações do enativismo chegam até a lógica, quando se busca entender noções de possibilidade e necessidade a partir de uma teoria que considera a relação entre coisas e pessoas. De modo geral, tratam-se de questões filosóficas pertinentes que se beneficiam da reflexão e das propostas enativistas sobre o que é a mente, a vida e a linguagem. E mais do que isso, há ainda o quanto essas diferentes visões podem influenciar e proporcionar reflexões para outras áreas do conhecimento. Por exemplo, para o entendimento da confiança como algo que está na interação dinâmica entre os participantes. Nesta abordagem, identifica-se uma visão diferente daquela de que costumamos confiar em outra pessoa.

Toda riqueza do texto enativista conquistou a inquieta pesquisadora, que buscava nas “Investigações filosóficas”, de Wittgenstein, respostas para o que é a mente, o que é a vida e o que é o significado. “Sempre me interessei por questões sobre o significado. Há várias teorias sobre o tema na história da filosofia da linguagem, mas que me deixavam um pouco frustrada por serem restritas. O enativismo é uma tentativa que admite a complexidade desses fenômenos e o tanto de coisas que precisam estar operando para que estes fenômenos se desenvolvam”, justifica Nara.
A pesquisadora observa que a teoria enativista se sustenta a partir da teoria dos sistemas complexos e, portanto, é preciso considerar muitas variáveis. “Porém, ao mesmo tempo, admite-se que é impossível considerar todas, porque nossa compreensão sempre será um recorte. Mas, ainda assim, é possível ter uma compreensão”, acrescenta ela.
A concepção de “corpo” elaborada pela teoria enativista a afetou pessoalmente. “Em um dos trechos, há uma passagem de que o corpo é muito melhor compreendido de modo análogo a um furacão do que a uma estátua. O corpo são processos que estão se desenvolvendo, se modificando, se construindo e desconstruindo o tempo inteiro, mas nem por isso deixa de ser possível uma identidade. Isso me trouxe uma certa tranquilidade na concepção do que são corpos e sobre a minha própria identidade, uma certa calma por assimilar a identidade como um processo em constante construção”, discorre Nara.
Saiba mais
Sobre o conceito-chave trabalhado no projeto
Conforme a coordenadora do Projeto Enact, professora Dra. Nara Figueiredo, um dos direcionamentos da pesquisa é teoricamente enquadrado pela noção de Produção Participativa de Sentido (PSM participatory sense-making), como concebido por Hanne De Jaegher e Ezequiel Di Paolo.
Tradicionalmente, a investigação da cognição social tem se concentrado principalmente em processos que se passam dentro da mente/cérebro individual. Em contraste, a PSM focaliza a emergência da cognição social a partir das interações dinâmicas entre indivíduos.
Sobre a metodologia adotada
O método de pesquisa PRISMA foi escolhido em razão de ser utilizado para incorporar o estudo da interação social. Nas interações experienciadas corporalmente, passo a passo, os participantes-pesquisadores desdobram e descobrem tendências e regularidades da intersubjetividade. Eles também refratam sistematicamente as interações em seus aspectos experienciais, ou seja, são provocados a analisar as interações sociais de forma sistemática e detalhada, especialmente focando nos aspectos experienciais ou subjetivos envolvidos. Em outras palavras, é como se eles estivessem examinando as interações sob uma luz específica, buscando compreender e interpretar os diferentes aspectos e nuances das experiências vividas durante essas interações.
Grupo de Pesquisa
Um grupo de pesquisa liderado pela professora Nara foi criado na UFSM para estudar, pesquisar e apoiar a participação e organização de palestras, workshops, entre outros eventos relacionados ao enativismo. O Grupo Cognição & Linguagem – UFSM reúne-se semanalmente. Interessados em participar devem enviar e-mail para nara.figueiredo@ufsm.br.